Não. Não se trata aqui de chamar a atenção para a sempre crescente tecnologia que dá suporte para os games, tornando-os cada vez mais realistas e, portanto, semelhantes a filmes — isso até mesmo a professora de balé da sua irmã já deve ter percebido, certo? Trata-se, antes, do modelo de negócios adotado recentemente pela indústria de jogos, que cresceu, e hoje encara a hercúlea tarefa de produzir conteúdos plurais, em uma tentativa constante de agradar gregos e troianos.
Senão, basta se lembrar da última edição da E3 (Electronic Entertainment Expo). Havia duas E3 correndo simultaneamente: uma para novidades tecnológicas, outra para apresentar marcas consagradas — com pouca ou nenhuma ligação entre as duas. Nem mesmo a Nintendo, com 3DS, novo Zelda e Donkey Kong conseguiu escapar totalmente a essa tendência. Afinal, para onde exatamente estão rumando os games?
Há quem aponte uma direção. Em entrevista recente ao site VideoGamer.com, o lendário Ron Gilbert — a figura cômica por trás de jogos como Monkey Island, Maniac Mansion e, mais recentemente, DeathSpank — afirmou que a indústria deve cada vez mais seguir os passos do cinema, a fim de se tornar mais plural e competitiva... Isso se ela conseguir sair de cima do muro, o que poderia trazer algumas consequências.
Uma indústria plural...... E o que isso representa para os jogos hardcore
Segundo Ron Gilbert, a possibilidade de a indústria de games negligenciar completamente os jogos com apelo mais hardcore — aqueles que arrastam legiões de fãs e demandam mais do que algumas horas de jogo — é a mesma de o cinema abandonar os blockbusters.
Gilbert declarou: “Eu enxergo os jogos hardcore da mesma forma que os blockbusters lançados durante o verão [inverno, no Brasil]. Você sabe, os blockbusters são muito importantes para os estúdios, já que representam boa parte dos lucros”. Entretanto, a indústria é capaz de produzir variados tipos de filmes. Em outras palavras, sim. Os jogos hardcore devem permanecer como o carro chefe de diversas desenvolvedoras, embora ainda exista espaço para outras abordagens.
Novas prateleiras para a sua loja de games
Da mesma forma que as livrarias abriram um espaço entre a literatura clássica e os livros técnicos para enfiar a recente leva de ficção popularesca — como determinada série de vampiros que nem sequer é necessário citar o nome —, também a indústria de games começa agora a encarar a necessidade de prover conteúdo para nichos os mais variados.
Há alguns anos, o designer de jogos Raph Koster colocou no ar uma coluna no site Gamasutra.com. Apesar da idade, o conteúdo permanece tremendamente atual. “Os jogadores hardcore terão que se adaptar a um mundo em que grande parte da atenção dos desenvolvedores está voltada para uma audiência mais ampla. A livraria está mudando, deixando de lado os conteúdos tradicionais para trazer corredores não ficcionais, corredores de música, corredores de livros de cabeceira, etc.” O paralelo salta a vista, é claro.
Quer dizer, se há algum tempo os jogos mal se dividiam entre ação, RPG e luta, hoje cada um desses gêneros se subdividiu criando novas tendências; novas necessidades. Fala-se hoje em RPG futurista. RPG adulto. Jogo de corrida estilo simulador. Jogo de corrida estilo arcade. Isso sem mencionar os jogos educativos, aplicativos fitness e o “drama interativo” inaugurado recentemente por Heavy Rain — embora o pioneirismo de Indigo Prophecy, também da Quantic Dream, seja inegável.
Entretanto, talvez o nicho mais impactante dentro da atual indústria seja mesmo o dos jogos de apelo mais popular. Ou, como preferir, aqueles voltados para o famigerado público casual.
Tem que ser divertido e interativo!
Mas investir em games já não é a mesma coisa que há uma ou duas décadas atrás. Uma das provas incontestáveis do salto popular dos videogames é a ascensão do chamado “público casual”. Trata-se do tipo de jogador que normalmente tem pouco tempo — ou mesmo pouca disposição — para investir mais a fundo nos games, preferindo antes alguns desafios simples e sem muito compromisso. E se for possível ainda perder algumas calorias, melhor ainda!
Afinal, quem pode enxergar através das demonstrações publicitárias durante a última E3, deve ter percebido que, trocando em miúdos, Move e Kinect indicam principalmente uma coisa: Microsoft e Sony — empresas que sempre levantaram a bandeira dos jogos mais profundos — tentam agora pegar o bonde da Nintendo andando.
Quer dizer, muitas promessas envolvendo os dois novos periféricos e jogos hardcore foram feitas. Entretanto, praticamente nada foi demonstrado durante a feira. Entre Kinect Sports e Tiger Woods PGA Tour 11, o que se viu principalmente foi muito “quero ser a Nintendo” — embora o aperfeiçoamento das tecnologias seja notável em relação à primeira concepção do WiiMote.
Um novo modelo de negóciosQuer algo de maior qualidade? Então pague!
E isso promete mudar a forma como se faz video game. Enquanto Ron Gilbert coloca suas fichas no pluralismo, como uma saída para a indústria frente às novas demandas, não é difícil imaginar que isso pode trazer uma consequência direta e um pouco preocupante: um aumento acentuado nos preços dos títulos hardcore.
Enquanto indústria caminha para um modelo de negócios mais “arredondado”, conforme coloca Gilbert, é de se imaginar em que momento os jogos hardcore deixarão de cumprir o papel de blockbusters para simplesmente se transformar em uma espécie de cinema arte. E por quê? Dois motivos: o crescimento exponencial do público casual e os custos cinematográficos demandados por títulos de grande porte.
O engenheiro de software Patrick Nguyen declarou há algum tempo em seu blog pessoal: “Conforme nós avançamos para o futuro, não há dúvida que os preços dos jogos grandes vão crescer, tanto para o consumidor quanto para o desenvolvedor”. Um indício disso? A diminuição dos jogos exclusivos, porque, “financeiramente falando, não há benefícios”.
Grandes empresas, pequenos negócios
Enquanto partia em defesa da distribuição digital, Ron Gilbert declarou que as grandes empresas hoje não estão mais tão interessadas em lançar títulos de US$ 30 ou US$ 40 milhões. “Eu não acho que DeathSpank seria concebido como um título de US$ 30 milhões, sabe? É muito excêntrico, mas é perfeitamente aceitável para os serviços de download”, afirma Gilbert.
De fato, há quem diga que, em um futuro não muito distante, o comércio digital de títulos pequenos e de apelo óbvio será o principal filão do mercado. “Conforme as grandes produtoras encontram nos serviços de download um espaço mais e mais atrativo, elas tendem a redirecionar seus recursos para jogos menores e mais lucrativos, em vez de títulos gigantes, caros e que não garantem o lucro da empresa”, afirma Raph Koster. “As corporações não podem ter dúvidas, especialmente hoje em dia”.
Mantendo o seu (custoso) hobby
Ok, isso não é necessariamente ruim, é claro. Conforme colocou Gilbert, os jogos menores permitem um experimentalismo maior, já que têm ciclos de desenvolvimento mais curtos e custam bem menos. Mas... Onde vão parar os jogos milionários? Raph Koster sintetiza o futuro das grandes produções de video game em uma frase (quase) autoexplicativa: “números falam, nichos andam”.
Isso equivale a dizer que, caso os jogos casuais acabem mesmo ocupando a maior parte do mercado, manter-se fiel aos jogos de estilo hardcore será mais ou menos como nutrir um hobby dispendioso. “Matemática básica”, afirma Koster. “Caso você fabrique jogos para uma minoria apaixonada que adora o seu hobby, você vai cobrar mais, a fim de cobrir os custos de operar em um mercado de pequeno porte”.
O futuro casualOu, talvez, nem tão casual assim
Microtransações, campanhas publicitárias milionárias, jogos de pequeno porte espalhados aos milhares consoles, celulares e redes sociais. Há quem diga que a atual configuração do mercado prevê, inevitavelmente, a ascensão definitiva do mercado casual de jogos. Pelo menos é isso o que afirma Patrick Nguyen:
“No futuro, daqui a 20 anos ou mais, a maior parte das vendas de video games será da variedade casual. As vendas de games vão depender do apelo do mercado de massa, e os jogos hardcore serão apenas alguns poucos. Quando um jogo hardcore — um jogo para jogadores, como queira —, for lançado, ele tirará sua receita diretamente das vendas de jogos casuais.”
Em outras palavras, no futuro os blockbusters de hoje, caros e de produção demorada, podem dar lugar — em termos de lucro — a jogos menores, mais rápidos e, imagina-se, muito mais simples. Mas a previsão pode não ser assim tão catastrófica. Para Raph Koster, daqui a alguns anos, o próprio público casual, então muito mais acostumado às mecânicas dos games, pode deixar de ser assim tão... Casual. Afinal, algo bem semelhante ocorreu com o cinema, certo? É esperar para ver.