Coluna: a indústria dos games realmente é “adulta”?

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Quando se fala em video games como obras de arte, é difícil não tentar estabelecer comparações com o cinema ou a literatura. Isso é explicado pelo fato de que o mundo dos jogos eletrônicos se apropria de muitas técnicas criadas por outras mídias para entregar narrativas que se diferenciam justamente pela característica interativa própria ao meio.

Porém, algo que os games ainda não parecem ter sido capazes de absorver de seus irmãos mais velhos é a variedade temática presente neles. Enquanto livros e filmes tratam de temas que vão da obesidade infantil até histórias de jovens magos que devem lutar contra as forças do mal, os jogos eletrônicos parecem inclinados a seguir uma temática mais homogênea.

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Basta pensar em sucessos recentes da indústria para ver que, ao menos no que diz respeito aos títulos AAA, alguns elementos em comum vêm à tona; entre eles, a violência exagerada e a exacerbação dos atributos sexuais de personagens. Em ambos os casos, tais jogos são vendidos como adultos pela indústria, que os disponibiliza acompanhados pelo selo “Mature” (maduro, em uma tradução livre) para os consumidores.

Porém, será que simplesmente explorar a violência gráfica e colocar certa dose de insinuações sexuais realmente faz de um game algo que possa ser considerado adulto? Ou estamos usando selos com nomenclaturas específicas somente como uma tentativa (falha) de justificar que nosso meio de entretenimento possui a mesma qualidade e profundidade de um clássico da literatura ou do cinema?

Maturidade superficial

Mediante uma observação mais aprofundada da indústria como um todo, é difícil chegar à conclusão de que a indústria realmente lida com assuntos considerados dignos de um adulto. Caso fosse necessário estabelecer uma comparação, o mundo dos games poderia muito bem ser igualado aos sonhos de um adolescente cujas únicas preocupações na vida são curtir algumas explosões e, depois disso, observar mulheres com pouca (ou nenhuma) roupa exibindo suas curvas bem delineadas.

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Pode até parecer exagero de minha parte afirmar isso, mas é difícil não chegar a essa conclusão depois de observar alguns sucessos recentes no campo dos games AAA. Far Cry 3, por exemplo, em seu cerne não passa de uma galeria de tiros em que é preciso acertar tudo o que há pela frente — com as eventuais pausas para o consumo de cogumelos alucinógenos e relações sexuais superficiais (e um tanto quanto bizarras).

Da mesma forma, títulos como Call of Duty e Battlefield se resumem a reproduzir a sensação de que somos guerreiros invencíveis, cujo único obstáculo para a glória são algumas mortes acidentais resolvidas por checkpoints rápidos — reflexões relacionadas ao fato de que você se transformou em um genocida ou que tratam sobre a irrealidade de sobreviver a uma saraivada de tiros são trabalhos para “jornalistas chatos” que “não pensam na diversão”.

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Até mesmo jogos como BioShock Infinite (um dos meus favoritos da geração) não resistem a uma inspeção mais detalhada. Apesar de fugir do lugar-comum dos jogos de tiro militares, as reflexões causadas pelo game são semelhantes àquelas deixadas por filmes como “A Origem” (“Inception”, no original) — título que tem sua qualidade como entretenimento, mas que dificilmente poderia ser considerado uma fonte rica de lições para a vida.

Em vez de passar uma mensagem que causa reflexão sobre aspectos da vida real, o game da Irrational Games faz com que você na verdade passe horas tentando entender como funcionam os poderes de Elizabeth e qual a maneira como a história terminou realmente. Por outro lado, reflexões sobre os motivos que levaram Booker a se tornar um matador são deixadas em segundo plano, assim como as consequências de suas ações ignoram a maior parte do tempo o lado humano dos moradores de Columbia.

Uma indústria machista

O principal sinal de que não lidamos com uma indústria adulta é o sucesso de debates como o “One Reason Why”. Originado a partir de uma hashtag do twitter, o assunto questiona os motivos pelos quais mulheres dificilmente são retratadas de uma maneira realista dentro do mundo dos games.


Desde o primeiro Super Mario Bros. até o já mencionado Far Cry 3, humanos do sexo feminino geralmente são caracterizados como seres sem personalidade cuja única função na história é servir como um prêmio para o protagonista. Para tornar isso ainda mais evidente, desenvolvedores não veem qualquer problema em equipá-las com vestimentas irreais, cujo único objetivo é destacar as “qualidades” das moças-objetos criadas por eles.

Mais do que destacar o papel ingrato que as mulheres têm dentro dos jogos eletrônicos, toda a discussão envolvendo o tema “One Reason Why” também serviu como uma forma de elas exporem a maneira ingrata como são tratadas por jornalistas e membros da própria indústria. Não foram raros os relatos de profissionais competentes que alegaram serem confundidas regularmente com recepcionistas ou que disseram que foram consideradas incompetentes automaticamente somente por serem atraentes — isso somente para citar alguns dos casos mais leves.

Fonte da imagem: Reprodução/Twitter de Jane McGonigal
Infelizmente, mesmo com a discussão, ainda continuamos a ver situações bizarras se repetindo. Exemplo disso é o fato de que a Naughty Dog teve que fazer um pedido especial para que mulheres também testassem The Last Of Us, e a notícia de que Remember Me quase não aconteceu porque “não podemos ter protagonistas femininas em um jogo”.

Um problema interno

A maneira imatura como as mulheres e outros temas são tratados dentro de grandes games pode ser explicada pela maneira como a própria indústria organiza sua força de trabalho. Em uma matéria publicada pelo site The Penny Arcade Report, Ben Kuchera mostra que não é incomum que profissionais da área trabalhem 10 horas (ou mais) por dia para conseguir cumprir os prazos determinados pelas empresas.

Fonte da imagem: Reprodução/Dabe Alan/The Penny Arcade Report
Quando se leva em consideração os longos períodos de trabalho, não é nenhuma surpresa que o público feminino não resista muito tempo no meio — elas, ao contrário de nós, homens, tendem a valorizar mais aspectos importantes da vida, como ter uma boa saúde mental e cultivar um relacionamento saudável com amigos e familiares.

O resultado disso são profissionais que iniciam suas carreiras aos 20 anos de idade somente para passar 10, 15 anos ou mais convivendo em um mesmo ambiente com exatamente os mesmos colegas de trabalho, sem ter tempo para desenvolver muitas relações externas. A falta de exposição a situações diferentes faz com que eles não amadureçam em determinados sentidos, o que resulta na produção de games que tratam de temas com a já citada visão adolescente.

Claro, o consumidor também pode ser culpado por isso até certa medida. Afinal, se continuamos comprando os mesmos títulos, independente do grau de maturidade que eles apresentam, estamos incentivando profissionais da indústria (e principalmente às publicadoras) a não investirem em ideias que fujam daquilo que traz lucro fácil.

Exceções bem-vindas

Apesar de a indústria AAA estar dominada por jogos em que, para ser considerado adulto, basta exibir uma grande quantidade de sangue e apresentar personagens sensuais, felizmente existem exceções a essa regra. Exemplo disso é o aclamado Spec Ops: The Line, que usa conceitos de jogabilidade conhecidos para fazer o jogador se questionar quanto à validade de atirar em adversários virtuais.

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Da mesma forma, o cenário indie está repleto de desenvolvedores que, por não terem que dar respostas financeiras a nenhuma grande empresa, podem se arriscar a produzir experiências diferentes das convencionais. Isso se reflete em games como Cart Life, no qual você deve lidar com os objetivos de vida de vendedores de rua em uma pequena cidade — todos eles com problemas semelhantes ao que enfrentamos na vida real, como a falta de motivação ou a solidão.

Outro exemplo de jogo que foge às convenções é Depression Quest, produção que tem o objetivo de retratar a forma como uma pessoa deprimida pensa. Mais do que proporcionar diversão, o título serve como uma verdadeira reflexão sobre um problema que afeta grande parte da população mundial.

Cart LifePara completar, podemos citar Catherine, game que explora as inseguranças que permeiam relacionamentos adultos. Mesmo contendo doses de erotismo, o game em nenhum momento soa vulgar, usando esse elemento como uma forma de tratar um tema comum a toda a humanidade sob uma perspectiva madura.

Esperanças para o futuro

Quando reclamo sobre a falta de maturidade da indústria em geral, não pense que o objetivo é criticar tudo o que há no mercado. Não estou lutando pelo fim dos games de tiro ou para que o mundo dos jogos eletrônicos seja formado exclusivamente por títulos que provocam reflexões profundas ou que discutem o papel do humano perante o virtual — afinal, é muito divertido simplesmente explodir cabeças sem ter que pensar em nada disso.

A intenção é simplesmente demonstrar que, para atingirmos o grau de maturidade vista na literatura ou no cinema, é preciso investir em variedade, especialmente quando se falam em títulos AAA. Afinal, uma ideia explorada no mercado indie pode ser muita boa, mas a própria natureza desse nicho faz com que elas não sejam capazes de atingir uma grande quantidade de pessoas.

Naturalmente, também cabe a nós, como jogadores, não se contentar somente com experiências superficiais e que nada agregam a nosso crescimento. Pois ninguém merece passar anos de sua vida simplesmente revivendo fantasias adolescentes que pouco têm a ver com angústias que vivemos em nosso cotidiano, por mais que escapar delas muitas vezes pareça a saída mais atrativa.

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