Coluna: afinal, quando vamos começar a valorizar os NOSSOS games?

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Eu não preciso gastar mais do que dez minutos navegando pelo BJ para encontrar centenas de comentaristas revoltados com o mercado brasileiro de jogos eletrônicos. Revoltados, indignados e armados com poderosos canhões de Caps Lock, eles reclamam da falta de incentivo governamental, da escassez de educação especializada e da desvalorização dos profissionais da área aqui no território nacional.

Sempre que me deparo com alguém desse tipo, a primeira coisa que me vem à mente é: afinal, qual foi o último jogo brasileiro que esse indivíduo jogou? Frequentemente, senão sempre, a resposta é ainda mais simples do que a pergunta: “Nenhum”.

Acredite, isso é algo mais comum do que você imagina. Mas, diferente do que muitos teorizam, nosso lento cenário de games nacionais não está estagnado assim por causa da Dilma, do PT, da FIFA, do Fuleco ou dos illuminatis. Grande parte da culpa é nossa, os jogadores, que há tempos aprendemos a rejeitar produtos culturais brasileiros e hipervalorizar os estrangeiros.

The Language Club

Games são cultura... Mas cultura de quem?

É muito simples ficar revoltado com a Marta Suplicy esforçando-se para não incluir os games no programa Vale Cultura, assim como é fácil usar suas cordas vocais para gritar em alto e bom som que jogos são sim legítimos produtos culturais. Claro que são. Mas são cultura de quem? Do Brasil que não é.

Nosso país não tem o costume popular – a.k.a., a cultura – de produzir games e até pouco tempo atrás não era sequer citado nas discussões sobre o mercado internacional de jogos eletrônicos. Isso não é exclusividade nossa, por sinal; pense bem, você já ouviu falar de alguma obra desenvolvida no Panamá, no Paraguai ou na Guiana Francesa?

Mais do que isso, raramente consumimos ou produzimos games que retratam a cultura brasileira. Jogos, como quaisquer outras formas de manifestações artísticas, carregam preceitos e características próprias do cenário social daquele que o desenvolveu – sendo assim, é natural que títulos japoneses retratem símbolos comuns da cultura ocidental, tal como produções norte-americanas tenham o costume de colocar os Estados Unidos em posição de destaque em seus enredos.

Operation Rainfall

Você pode até não perceber, mas esse é um detalhe que pode ser observado em qualquer narrativa. Você se lembra da franquia Front Mission? Seus dois primeiros jogos ficaram restritos ao mercado nipônico pelo simples fato de que os protagonistas eram do exército asiático e lutavam contra forças militares ocidentais – quando a situação se inverteu em Front Mission 3, a série repentinamente passou a ser traduzida e comercializada pela Square na Terra do Tio Sam.

E o personagem Karn, do primeiro Breath of Fire? Sorrateiramente, o ladrão – que era negro no jogo original japonês – sofreu um estranho “clareamento de pele” na edição norte-americana do RPG. Adaptações e cortes de conteúdo são coisas normais no mercado de games, visto que nenhuma softhouse quer criar polêmica dentro de alguma determinada sociedade de cultura diferenciada.

Enquanto os japoneses se orgulham de títulos como Okami e Muramasa: The Demon Blade (que abordam a mitologia local de forma diretíssima), ainda temos vergonha de ver um índio em Aritana e A Pena da Harpia ou um lutador de capoeira em Capoeira Legends: Path to Freedom. Enquanto estúdios californianos trabalham em um belíssimo título que aborda a época da escravidão em nosso país, temos a mania crescente de querer negar nossa história, nossos costumes, nossos problemas, nossas belezas... Enfim, a nossa cultura.

Um vício difícil de curar

Infelizmente, essa obsessão pelo estrangeirismo não é algo limitado ao mundo dos games: ela também se estende para a área musical, literária e artística em geral. Sinto isso na pele diariamente: como autor publicado, foi difícil aceitar que o maior problema de ser escritor no Brasil não é simplesmente lidar com editoras malucas, distribuidores gananciosos ou livrarias desajeitadas. O maior problema é que ninguém quer ler o meu livro simplesmente porque ele é uma obra brasileira, e não um best-seller estrangeiro.

Não me faltam exemplos aqui. As pessoas preferem ler E. L. James do que Eric Novello; gostam mais de ouvir Lorde do que Blubell; acham mais interessante assistir um filme blockbuster qualquer feito com uma verba absurdamente desnecessária do que conferir o trabalho de um Fernando Meirelles da vida.

O mais engraçado é observar que as pessoas que sequer se dão o trabalho de olhar os artistas nacionais de longe são as mesmas que engrossam discussões “intelectuais” (muitas aspas, por favor) sobre a pobreza de nosso mercado cultural. É o clássico “Brasil só tem funk e futebol!”, que tanto leio por aí.

Joymasher

Será mesmo? Ou será que você não pesquisa? Ou será que você simplesmente não acompanha nossos talentos porque não quer? Melhor ainda: será que aqueles que tinham naipe para mudar esse estereótipo retrógrado já não morreram no silêncio porque VOCÊ não estava lá para consumir e prestigiar o seu trabalho?

De acordo com Marília Pasculli, artista conceituada e curadora da mostra Play!, “falta interesse do consumidor por uma temática nacionalista, certamente um problema que esbarra em muitas outras questões sociais”. Para a paulista, o Brasil tem potencial para faturar bilhões de dólares com o mercado de games nacionais, mas está no caminho errado ao “seguir um modelo de produção, linguagem e temática internacionalizado, não produzindo significantemente games que retratem a cultura brasileira”.

Donsoft Entertainment

Quando a internacionalização é o melhor caminho

Agora pare e observe: os poucos estúdios brasileiros que produzem games de sucesso quase sempre são aqueles que parecem fazer esforço para “esconder” a sua nacionalidade. Milhares de pessoas jogam Taikodom diariamente sem saber que a Hoplon é tupiniquim; o mesmo ocorre com o premiado Knights of Pen and Paper, feito pelos brasilienses da Behold Studio.

O site dos caras não tem um único texto em português, e, se não fosse pelo domínio .br e a página biográfica, seria difícil saber que eles têm sangue brasileiro correndo pelas veias. Essa situação se repete quando tentamos obter informações acerca do Kidguru Studio, softhouse responsável por Freekscape, o primeiro jogo brasileiro desenvolvido para PSP.

Tom's Guide

Hoje em dia, um aspirante a desenvolvedor sabe o que será necessário fazer para obter o mínimo de sucesso possível em sua carreira: ele precisa criar um título em inglês, um site em inglês, fazer publicidade em inglês, procurar apoio de investidores estrangeiros e lançar um título focado no mercado internacional.

Fazer jogos brasileiros para os gamers brasileiros é suicídio; no máximo você pode trazê-los para cá quando já fizerem certo sucesso em outras sociedades.

Outra opção é simplesmente ingressar em um estúdio gringo, alternativa que tem sido a saída de muitos jovens que almejam algo maior. O paulistano Victor Moura, por exemplo, atualmente trabalha no time de arte do aclamado Terraria sem jamais ter pisado em uma universidade. Autodidata e hoje com 21 anos, o jovem ficou famoso no cenário “underground” de indies com sua belíssima obra Zu, feita com base na plataforma RPG Maker.

Baixaki

Pesquise, experimente, jogue!

Infelizmente, não há medidas públicas ou incentivos fiscais capazes de mudar o jeito como enxergamos e aceitamos a nossa própria cultura. Isso é algo que só depende de nós, da nossa percepção dos talentos nacionais e de nossa vontade de evitar essa inversão de valores. Quer colaborar com essa mudança? Comece mudando a forma como você se posiciona dentro do mercado de games.

Pare de babar em trailers cinematográficos (que poucas vezes refletem os gráficos de gameplay) e vá dar uma volta no Splitplay, serviço que atua como um “Steam” de jogos independentes brasileiros. Esqueça por alguns minutos aquele título hypeado (que provavelmente será só mais uma decepção) e faça uma rápida pesquisa sobre os novos desenvolvedores tupiniquins que estão tentando colocar nosso país no mapa mundial de produtores de games.

Não estou pedindo para você se esquecer da E3, mas se lembrar de acompanhar um BIG Festival ou um SBGames de vez em quando nunca é demais. Você vai ficar impressionado com a quantidade de obras de excelente qualidade que você logo encontrará. Vai conhecer a beleza saudosista de Oniken, a premissa divertida de Like a Boss e o terror psicológico de As Duas Irmãs. Vai aprender a apreciar a arte inigualável de Toren, um dos primeiros jogos nacionais a ser apoiado pela Lei Rouanet de incentivo à cultura.

Toren

Afinal, de nada adianta termos cursos especializados, profissionais capacitados, incentivos governamentais e uma produção agressiva de games nacionais se o principal público consumidor – nós – não pensa em consumi-los.

E também já está na hora de valorizarmos mais as obras feitas por nosso povo e que falam sobre o nosso povo; se for para jogar um game ambientado em Londres, protagonizado por personagens tipicamente britânicos e com um enredo recheado de elementos da cultura do Reino Unido, que seja uma obra “importada” diretamente dessa sociedade.

Quem sabe um dia entenderemos a importância de valorizar os costumes brasileiros e poderemos dizer, com razão e propriedade, que jogos fazem parte da cultura do Brasil.

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