Coluna: você se ofende com a dificuldade Easy?

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Cuphead

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do Voxel sobre o assunto.

Basta ler qualquer notícia relacionada à dificuldade de algum título ou alguma análise que toque nesse ponto para ver surgir comentários sobre a “geração Nutella” ou sobre como “bom mesmo era no passado, quero ver terminar Ninja Gaiden”, entre outras variantes. No campo da internet, falar que achou um jogo injustamente desafiador ou admitir que não jogou direto no “hard” muitas vezes é encarado como um crime inafiançável.

Essa não é uma história nova: quem convivia nas locadoras dos anos 90 sabe o quanto era fácil zoar alguém que “jogou tudo no Easy” ou que apelava para as artimanhas de um Game Shark para conseguir terminar games mais difíceis — ou que nem eram tão desafiantes assim, mas se tornavam muito mais rápidos de finalizar quando seus personagens eram imortais e tinham munição infinita nas melhores armas.

Falar que achou um jogo injustamente desafiador ou admitir que não jogou direto no 'hard' muitas vezes é encarado como um crime inafiançável

No entanto, me parece que essa história está sendo levada cada vez mais a sério e usada como argumento para “checar a carteirinha gamer” pela internet. Não jogou no hard? Não é “gamer”. Só queria ver a história e diminuiu a dificuldade? “Geração Nutella”. Diante dessa situação, parece que, caso um jogo não tenha o desafio de um Dark Souls, ele não é hardcore o suficiente e deve ser visto como um projeto menor.

Mas será que a equação “quanto mais difícil melhor” realmente é o que faz um game ser bom? Ou será que, em meio a discussões envolvendo ego e a necessidade de eliminar a validade da experiência alheia, não estamos perdendo o ponto que fazemos de um jogo algo realmente proveitoso?

Questão de equilíbrio

Em sua obra “Realidade em Jogo”, Jane McGonigal compara a experiência de aproveitar um game à realização de um trabalho recompensador. Quando a tarefa feita é muito fácil, ela se torna desinteressante e chata, fazendo com que desistamos da experiência em pouco tempo. “Vamos do stress e da ansiedade diretamente para o tédio e a depressão”, nas palavras da autora.

Crash Bandicoot

Segundo McGonigal explica, os melhores jogos são aqueles que fornecem o que é chamado de “diversão dura” — aquela em que precisamos realizar certa quantidade de esforços para conseguir a recompensa desejada. “Do ponto de vista fisiológico e neurológico, eustress [o stress positivo] é virtualmente idêntico ao stress negativo: produzimos adrenalina, nosso circuito de recompensa é ativado, e o fluxo sanguíneo aumenta para o centro de atenção do cérebro. O que muda fundamentalmente é a nossa mentalidade”, explica ela.

Os melhores jogos são aqueles que fornecem o que é chamado de 'diversão dura'

É esse o motivo pelo qual muitas pessoas ficam frustradas com os ditos “walking simulators” ou games em que não há qualquer espécie de desafio. Quando não existem chances de que você falhe ou tudo o que você precisa conseguir pode ser obtido facilmente, a motivação para prosseguir vai embora e não se atinge o estado de “fluxo” — algo que é o objetivo da maioria dos game designers.

“O fluxo é o sentimento de uma intensa concentração e eficiência”, explica McGonigal. “Aspectos-chave do fluxo incluem um desafio com objetivos claros, regras bem estabelecidas para a ação e uma dificuldade que cresce com o tempo. Todas essas coisas funcionam bem em games. A própria natureza dos video games permite que os jogadores atinjam o sentimento de fluxo muito mais rápido. Quando um jogador experimenta essa alta emocional, desistir ou vencer seriam resultados igualmente insatisfatórios. Eles querem continuar jogando e se mantendo ‘na zona’ o maior tempo possível”.

Quando finalmente vencemos um inimigo difícil ou resolvemos um quebra-cabeça complicado, atingimos aquilo que a autora chama de “Fiero”, termo usado para definir aquela sensação que mistura alívio, vitória e felicidade. A sensação é tão prazerosa que muitos jogadores acabam ficando “viciados” nela, buscando cada vez mais experiências que testam os limites de suas habilidades.

Darkest Dungeon

Ao mesmo tempo, apostar em um nível de dificuldade muito exagerado também pode gerar um sentimento de insatisfação. Quando você não consegue vencer ou sente que está jogando contra regras injustas, há muito mais chance de desistir e procurar uma experiência melhor do que simplesmente “quebrar a cabeça” e se estressar somente para “provar que é um true gamer”.

Uma experiência que não oferece regras claras e exige um nível de habilidade muito maior do que você teve a chance de desenvolver é tão frustrante quanto ter que responder um questionário de física quântica sem nunca ter olhado a matéria na vida. Não há prazer ou satisfação naquilo, somente a vontade de largar tudo e nunca mais passar por essa situação novamente.

“Quando tememos a falha ou o perigo, ou quando a pressão surge de uma fonte externa, a ativação neuroquímica excessiva não nos faz felizes. Ela nos deixa zangados e combativos, ou nos faz querer escapar e nos fecharmos emocionalmente. Isso também pode desencadear comportamentos de evitação, como comer, fumar ou usar drogas”, explica MgGonigal.

Questão de acessibilidade

A grande questão que o pessoal “hardcore” parece ignorar é que nem todos os jogadores levam games com o mesmo nível de dedicação, e tem muita gente que está entrando nesse universo somente agora. Exigir que uma pessoa que só encarou esse mundo graças à acessibilidade dos tablets vá direto para um Cuphead ou um NiOh pode dar bons resultados, mas são grandes as chances de que ela ache essas experiências intimidadoras e desista do hobby.

XCOM 2

Da mesma forma, crianças que sequer têm controle completo sobre sua coordenação motora provavelmente vão preferir jogar algo que dê mais brechas para erros ou que exija o uso de uma quantidade reduzida de botões na hora de se divertir. O mesmo também se aplica a adultos que não necessariamente cresceram acostumados a lidar com controles com dez botões, dois analógicos e sensores de movimento, por exemplo.

A questão da acessibilidade não se trata de um “mero detalhe” ou de uma “reclamação de um Nutella”, mas sim de uma preocupação real que a indústria precisa ter para expandir seus horizontes — e lucros. O que muita gente parece não entender é que o fato de que alguém jogou seu game favorito em uma dificuldade menor não diminui a experiência de quem foi direto no hard, mas sim permite que mais pessoas aproveitem aquilo — e, quem sabe, decidam realizar uma nova jogatina em um modo mais desafiador.

A questão da acessibilidade não se trata de um 'mero detalhe'

É justamente por se preocupar com isso que muitas desenvolvedoras mobile estão conseguindo atrair públicos muito maiores e variados do que diversos jogos “Triplo A” com orçamento multimilionário. Títulos como Clash Royale, por exemplo, se beneficiam muito de regras claras e simples de entender, partidas inicialmente acessíveis e esquemas de controle que não exigem todo um treinamento motor prévio.

Lembrando o que escrevi anteriormente sobre “fluxo” e “fiero”, é preciso notar que essas duas sensações prazerosas são obtidas diferentemente por cada pessoa. Em outras palavras, alguém pode se divertir tanto (ou mais) experimentando um game no modo Easy do que um jogador mais veterano que só consegue ter algum desafio no “Hard” — e não há nada errado nisso.

Dark Souls

Obviamente, essa questão dos níveis de dificuldade não é algo que pode ser aplicado a todos os games: NiOh, Dark Souls e Cuphead, por exemplo, são divertidos justamente pelo nível de desafio alto que proporcionam. No entanto, querer aplicar as mesmas regras a experiências como Uncharted, The Witcher 3: Wild Hunt ou Divinity: Original Sin (só para citar alguns exemplos que me vieram à mente) não necessariamente dão resultados bons — afinal, o ponto mais prazeroso desses games pode ser a história, por exemplo, e não necessariamente o gameplay.

A partir do ponto em que a decisão de outra pessoa não interfere com o nível de “fluxo” e “fiero” que um jogador vai obter, não vejo a razão para tanta discriminação em relação a quem se diverte com dificuldades mais acessíveis. Ou será que, mais importante do que se divertir com um game é a sensação de “exclusividade” que se tem ao terminar algo que outros não conseguiram?

Se esse for o caso, acredito que o problema não está necessariamente nos jogos, mas sim em uma “cultura gamer” que parece acreditar que o hobby não deve ser acessível a ninguém que não cumprir uma “cartilha de pré-requisitos” definidos por sabe-se lá quem cujo único intuito é traçar uma linha entre quem “merece” ou não aproveitar jogos, como se a experiência individual de outra pessoa pudesse, de alguma forma, diminuir nosso próprio aproveitamento de um game.

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